segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

A Furiosa e os Furiosos

Saiu o resultado, não foi dessa vez. Infelizmente terei que me contentar com o segundo lugar de minha escola vermelha e branco. E também não foi dessa vez que vi uma manifestação puramente indígena, sem nenhuma tentativa forçada de representar o Brasil como um país que “sempre foi miscigenado”. Podermos ver inúmeros exemplos em que as culturas afro e européias conseguem ter seus momentos “carreira-solo”, mas quase nunca vemos os brasileiros originários tendo seu momento de glória, na Apoteose ou qualquer outro lugar. Parece que os não-índios têm medo de que quando este dia chegar, nós possamos pedir as nossas terras de volta! Kkkkkkkkkk

Independente do nome “samba” aparentemente derivar do ritmo “semba” da África, o nosso ritmo que temos hoje é proveniente do Côco, dos Xocós e dos Fulniô. Os Grêmios Recreativos, desde a “invenção” do carnaval, parecem ter sempre baseado tudo o que envolve esta parte da nossa herança, na cultura africana. Não só na sua concepção, mas até hoje dentro do samba existem muitos aspectos indígenas (instrumentos como os maracás e apitos por exemplo). Um grande reparo precisa ser feito na forma que vemos a história do samba, e precisamos reconhecer que ele surgiu no Nordeste no século XIX, ou antes, e não no Rio de Janeiro no século XX, como é aceito hoje pela maioria.


Voltando ao desfile da Salgueiro, no programa da Fátima Bernardes, o carnavalesco Milton Cunha mencionou que a “santa tem cocar”, e por causa disso aquilo representava a miscigenação do Brasil: “índio, negro e branco”. Ele está se referindo à comissão de frente da escola, composta de dançarinos fantasiados de índios Botocudos (ou Aymorés), que em um determinado momento da coreografia fazem uma roda em volta de uma índia montada em cima de outro índio.  Depois eles colocavam um tapete de LED azul em cima dos ombros dela fazendo-a parecer com a Nossa Senhora do Rosário, enquanto os índios em volta ajoelham em posição de louvor.

Embora todos nós desejemos uma convivência pacífica entre todas as raças e crenças, e respeitamos as culturas que vieram de fora do Brasil e decidiram morar aqui, eu diria que a retratação da Nossa Senhora do Rosário no meio dos Botocudos é uma ofensa, até mesmo um deboche da Ditadura Monolítica. Quando eles querem desmoralizar um povo que eles tentam conquistar, eles usam seu aparato de mídia em massa para estabelecer uma versão dos fatos não só mentirosa, mas “maquiada” para ficar mais apresentável e dócil ao paladar dos foliões, que somos nós, só que o ano inteiro.



Será que o indígena do Brasil merece tão pouca exposição na mídia? Porque não temos celebridades indígenas, ou momentos onde o índio é trazido ao centro das atenções? Se o tema são os Botocudos, esta interpretação não pedia uma exaltação “principal” à cultura deste povo? Perdoe-me os Católicos, mas o que é que aquela santa está fazendo ali? À primeira vista a iniciativa do coreógrafo Helio Bejani parecia ótima. Não faltou investimento para sua comissão de frente equipada com tapete de 11.000 lâmpadas de LED e carro alegórico em forma de Bicho da Taquara, que ao virar de cabeça para cima se tornava um ser metade índio, metade larva.

A larva é o Bicho daTaquara, que se usava para fazer ensopados, e tanto o espanhol Cabeza de Vaca em 1542, quanto o padre Anchieta e sua trupe em 1560, parecem ter gostado da iguaria, que descreveram como tendo gosto de porco. Mas essa larva também se transforma em mariposa (que era o que estava estampado no carro da Furiosa, com grafismos desenhados abaixo das asas), e era comida arrancando a sua cabeça venenosa, e engolindo o corpo com intestinos e tudo, usado como alucinógeno ou medicina para insônia. Quando tomado para usos recreativos diz-se dar sonhos maravilhosos para os índios. Mas porque nenhum comentário mais aprofundado? Porque não se deram o trabalho ao menos de mencionar que o nome “botocudo” nem sequer se refere à uma tribo ou etnia de verdade? É um apelido ofensivo dado a alguns Jês de Minas Gerais, Espírito Santo e Sul da Bahia, comparando os botoques (imató) que usavam nos lábios e nas orelhas com as rolhas dos barris de vinho português.



A referência à Nossa Senhora do Rosário está apontando para o evento de onde se iniciaria o massacre final do povo Krenak (Gutkrak) e vários outros, especialmente os que viviam na região Leste de Minas Gerais. Durante centenas de anos, enquanto as minas de ouro e diamante estavam abundantes, a Coroa Portuguesa impedia a passagem direta por aquela região, para evitar o contrabando. Os fazendeiros dali reclamavam da violência dos índios e do difícil acesso à igrejas. Em 1702 quando os bandeirantes Manoel Correia de Paiva, Gaspar Soares e Gabriel Ponce de Leon descobriram ouro nas areias do córrego Cuiabá, iniciaram uma dura luta com os índios locais por 26 anos.  Até que decidiram mudar suas táticas e mexer com o “psicológico” dos índios, remover o cocar de seus akangs e colocar uma aureola cheia de culpa, construindo uma capela para esta santa. Conforme o historiador Geraldo Dutra de Morais, o sincretismo “rolava solto” nesta festa do Rosário, celebrada anualmente com o "congado" ao som dos instrumentos africanos como pipiruis, caxambus, berimbaus, marchetes, acompanhados de danças sob os comandos do Rei Congo e a Rainha Ginga e uma corte eleita. Foi nesta mesma linha de pensamento que consequentemente o bispo do Rio de Janeiro, Frei João da Cruz, em 15 de Outubro de 1741 criou a cidade de Abre-Campo, freguesia famosa por haver “sido quatro ou cinco vezes atacada e uma literalmente arrasada a fogo pelo selvagem botocudo".

Aquilo foi o início do fim para os Jês do Rio Doce.  Em 1808 Dom João VI chegou ao Brasil, em nome de sua mãe Dona Maria I, a louca. O Príncipe Regente veio fugido da Europa com o rabo entre as pernas, e dois meses depois declarou guerra ao Botocudos.  Parece até que queriam descontar nos índios a surra que tomaram de Napoleão! Os parentes foram de protetores do Watu, à inimigos públicos número um.  O pretexto da ofensiva era: os botocudos controlam os sertões, impedem a navegação, rechaçam o povoamento e não deixam que os mineiros aproveitem as imensas riquezas do sertão do Rio Doce. Na verdade repetia-se constantemente que queriam escoar matérias-primas e alimentos pelo rio para o resto do Sudeste, mas após o final da guerra este mesmo verificou-se não navegável.  O Governador de Minas Gerais, Pedro Maria Xavier de Ataíde e Mello, foi implacável no que viria a ser um dos episódios mais sangrentos da História do nosso país.  A primeira tática, e mais óbvia, era derrubar a primeira fonte de sustento dos índios, a mata.  A segunda foi dar vida boa para malandros:
Para que o povoamento ocorresse, seriam necessários dois tipos de pessoas: os endividados, que sem meio algum de pagar as dívidas iriam atrás desse “novo Potosi”; e os vadios, criminosos, “gentalha, a mais perigosa na sociedade”, que seriam obrigados, além de povoar, cultivar aquelas terras. O povoamento seria estimulado com a isenção da taxa do dízimo e moratória aos que tinham dívidas com o Estado e com os particulares. O governo também deveria fornecer-lhes sementes e ferramentas, gratuitamente, nos primeiros anos. (Extermínio e Servidão - Haruf Salmen Espíndola, 2011)

O Governo, que antes da guerra nem sequer haviam se dado conta que os índios locais eram nômades, criou então seis divisões de infantaria (DMRD- Divisão Militar do Rio Doce).  Incitaram a rivalidades de arqui-inimigos como os Puris, Malalis e Maxacalis, que ajudariam a acabar com os Krenaks, Nakrehé, Crecmum, Pejaurum, Ituêto (Etwét), Jiporok e os Naknenuck, cuja tribo o comandante-geral fez questão de afirmar oficialmente que não era antropófoga. Este estigma não foi confirmado por nenhum militar, missionário, diretores ou viajantes a respeito de nenhuma dessas tribos. Entre 1800 e 1814 foram construídos sete quartéis no sul da Bahia, 27 no nordeste e leste de Minas (sendo vinte na região do Rio Doce) e 38 no Espírito Santo.  Geralmente as tropas se aproximavam dos aldeamentos durante a noite, para atacar os índios sonolentos e confusos pela manhã. As mulheres e crianças eram distribuídos pelos fazendeiros como mercadoria. Segundo a carta régia os fazendeiros foram autorizados a “servirem-se gratuitamente do trabalho de todos os índios que recebessem em suas fazendas, tendo somente o ônus de os sustentarem, vestirem, instruírem na nossa santa religião” pelo período de 12 anos, sendo que esse prazo poderia ser estendido para 20 anos.

Os colonizadores ironicamente batizaram este conflito de "Guerra Justa". Os números de baixas oficiais não são muito difundidos, mas segundo Augusto de Saint-Hilaire em 1818 a densidade demográfica seria de 10 índios por légua quadrada em MG e 150 no ES.  Isto gera uma cifra de 130,000 e 324,000 respectivamente. É um número altíssimo considerando que as estimativas tradicionais é de que o Brasil teria apenas entre 5-10 milhões de habitantes na época do Descobrimento. As estimativas de Guido Marliére eram bem mais acanhadas, segundo ele apenas 20,000 índios entre MG e ES estariam ameaçando a Coroa.  Já na época de Teófilo Otoni esse número já havia caído para 10,000.

Supostamente a política indígena mudou com a chegada de Marliére.  Um oportunista fugido da França que trazia sua nobre esposa e na bagagem acusações de espionagem. Foi contratado como inspetor geral de todas as Divisões Militares, para tentar pacificar os nativos.  Mas aparentemente a violência não cessou tão facilmente, segundo Teófilo Otoni chefe da Companhia da Mucuri (1858), um comandante militar, para que não houvesse dúvida de seus feitos, trouxe consigo “o asqueroso despojo de 300 orelhas, que mandou amputar dos selvagens assassinados”. Cães foram  especialmente treinados na caça aos Botocudos, alimentados inclusive com carne de indígenas assassinados.  Foi feito todo tipo de comércio ilegal, como de crianças (1 Krenak valendo uma espingarda)  e de cabeças de Botocudos mortos em combate, dezesseis delas foram vendidas a um francês que disse tê-las comprado para o museu de Paris em 1846.

Foram dadas concessões de terras igualáveis ao príncipes mais abastados da Europa. O senhorio que se dispusesse a participar da conquista por conta própria deveria aniquilar um mínimo de 1.200 índios adultos, e fundar povoados de pelo menos 100 europeus. Aos poucos foram feitas tentativas de aldear os nativos para tentar levar ao sedentarismo aqueles que ainda não haviam sido escravizados. Agora com os índios todos concentrados em um só lugar ficaria fácil a contaminação através de roupas e cobertores, infectados com doenças como o sarampo, por exemplo. Em um relato de Freireyss em 1815: “O comandante [do quartel de Santana dos Ferros] nos contou que já tinha amansado quinhentos Puris e os domiciliados em lugares determinados, fazendo-os acabar com toda hostilidade contra os portugueses e seus amigos; mas acrescentou, com uma risada diabólica, que se devia levar-lhes a varíola para acabar com eles de uma só vez, porque a varíola é a doença mais terrível para esta gente”.



Os Botocudos contavam que os adornos labiais e ouriculares eram uma indicação de seu herói-cultural, chamado Marét-Khamaknian, que vivia no céu. Sua divina esposa era chamada Marét-Jikki (a velha Jikki), mas o casal não se dava muito bem e suas brigas eram a explicação para as diferentes fases da lua. Acreditavam que através dos seus sonhos era possível visitar o mundo dos Marét, repleto de fartura e riquezas. Por intermédio desse contato, estabeleciam seguimentos de suas vidas humanas e até mesmo previsões futuras relacionadas à comunidade.

Os bravos guerreiros, pais atenciosos e  bons maridos receberiam a recompensa depois da morte, indo morar numa terra de mata virgem, abundante de frutas, caça e belos rios fartos de peixes. Os covardes e preguiçosos iriam para uma terra árida, sem matas e com rios sujos e sem peixes. Os mortos eram embalsamados com fibras de embira, com a cabeça coberta por uma carapuça e pendurados com uma faca ao pescoço por tiras. Sepultava-se o morto junto a suas ferramentas, armas e pertences pessoais, e colocavam-se canudos de mel e água como alimento no outro plano espiritual. Já as mulheres eram certas de ter seus dotes tradicionais, por isso iriam apenas panelas e água. Por isso que nos combates quando alguns dos seus caíam mortos, faziam todo esforço para reaver os cadáveres, pois somente debaixo da terra estariam seguros de Nantshone (diabo).


A ocupação definitiva do Vale do Rio Doce só acabou acontecendo no início do século XX, a partir da construção da estrada de ferro Vitória-Minas, pela atual Companhia Vale do Rio Doce.Os Botocudos sobreviventes, das guerras coloniais, tiveram então que enfrentar as conseqüências da construção da estrada de ferro, que acarretou em uma diminuição ainda maior de seu povo.  Os índios chamavam a Maria-Fumaça que percorria os trilhos de "Guapo", que significa monstro que vomita fogo. Os Krenak não aceitaram a invasão do 'Guapo" que cortava seu território e faziam expedições à noite para arrancar seus trilhos.



Diante de tanta penúria, na minha mente só resta esboçar uma reação de pensamentos positivos, quem sabe recordando da quantidade de gente que vi fantasiada de índio neste carnaval.  Não sei se eram os efeitos etílicos, ou o fato de que passei a ler muito sobre cultura indígena, mas a sensação passeando pelos blocos foi de que havia uma quantidade muito maior de gente fantasiada de índio do que em todos os carnavais passados. Não só fantasiada, mas bem fantasiada, com adereços e grafismos que indicam mais respeito à cultura, tendo um mínimo de cuidado de homenagear nossa ancestralidade, e não apenas colocar qualquer coisa, ou pintar a cara de vermelho. Deixo vocês com uma série de fotos, que quem sabe, possa inspirar melhores carnavais!