segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

A Festa Melou

É necessário ser feminista para ser indigenista? Bom ànàm wà (parentes), pelo visto parece que sim. Não muito diferente da forma como o feminismo se disseminou entre os caraíbas nas metrópoles, parece que este movimento chegou sorrateiro na calada da noite, pregando o equilíbrio e co-operação entre os sexos, e agora quer trabalhar para destruir as sociedades baseadas em laços de parentesco e família extensa. Segundo o próprio blog da Funai de Imperatriz-MA: "a unidade mais importante da estrutura social Tenetehara é a família extensa, constituída por um número de famílias nucleares reunidas por laços de parentesco."

Ao abrir a página oficial do ISA - Instituto Socioambiental, uma das páginas mais visitadas por indigenistas brasileiros, encontro uma passagem que me chocou, pois parecia ter traços que remetem à ideologia de gênero. Na descrição de uma das etnias mais "brasileiras" de todas, os "seres humanos verdadeiros" que se auto afirmam como protótipo da humanidade e encarnação perfeita da criação de Tupàn, são reduzidos à machistas retrógrados sem nenhuma virilidade.  Uma etnia que segundo Mércio Gomes, "[embora outros povos sejam etnocêntricos] e se posicionam como os Tenetehara, poucos se autodenominam com tanta propriedade cultural" (p. 48).  Mesmo que indigenistas respeitados como o ex-presidente da FUNAI considerem os Guajajaras como a semente que mantém a natureza em equilíbrio, outros parecem não zelar por nossa cultura originária da mesma forma, vejamos a seguinte absurdez escrita a seu respeito:

Pelo visto o Instituto Socio Ambianetal também tem um lado humorístico.

Será que um católico criticaria a própria igreja por só haverem padres homens? Você já viu um judeu mal falar sua própria religião por só haverem rabinos homens?  Alguma mulher quando passeia no shopping reclama que quem construiu aquela estrutura de concreto foram todos pedreiros homens?  Não!  É claro que críticas construtivas são sempre bem vindas, mas temos que lembrar que esta estrutura social existe a mais de mil anos, e tem sobrevivido a duras penas, mesmo com toda a repressão da sociedade invasora européia. Nem sequer tivemos tempo de trazer o debate do indígena para o grande público, e instituições financiadas para disseminar o feminismo já estão invadindo as aldeias, sem dar tempo sequer para os homens modernos verem que o índio masculino tem tudo o que lhes falta na sua cabeça infantil, que joga videogame o dia inteiro, tem um emprego numa multinacional escravizadora (e acha o máximo e se orgulha disso), escuta pagode e funk como se fossem a música nacional do Brasil, frequenta boites (segue as modinhas religiosamente) e ainda faz filhos por aí sem a menor intenção de criá-los.

Dentro da cultura Guajajara, como na maioria dos povos originários, existe a divisão sexual do trabalho. Os dois tipos de tarefas se complementam, o plantio é feito majoritariamente pelos homens, e a colheita em geral pelas mulheres. Segundo os diários de campo de Eduardo Galvão, os homens devem carregar água, pilar farinha, quebrar coco e carregar fardos de mandioca. Já as mulheres encarregam-se de fazer farinha, cozinhar e cuidar das crianças. A fabricação da farinha em si é feita pelos homens, descascando, ralando e torrando os grãos no forno. As mulheres como tecelãs também à noite costumam enrolar os fios de algodão. Nas épocas de caçadas, as tocaias são feitas por grupos de homens e podem durar até duas semanas, durante esse período as mulheres devem ficar em casa, exceto quando a caça é para a festa do moqueado, quando excepcionalmente a "mulher vai com os caçadores para a mata, a fim de cuidar do moqueado, colocá-lo no defumador para que não apodreça".  Mas normalmente "as esposas não podem se embalar, tampouco balançar as crianças, porque do contrário, o caçador quando corre no mato, pode se ferir num toco de pau ou ser lançado por um cipó (...) Enquanto estão caçando as mulheres devem varrer todo dia o terreiro, a fim de que os homens tenham sempre na frente o caminho limpo e não possam se perder na floresta", como descreveu Zannoni em "Conflito e Coesão", um livro que não deveria de forma alguma estar fora de publicação.

Como podemos ver não existe opressão nenhuma de nenhum dos lados. As mulheres se beneficiam comendo a carne que os homens caçam, e os homens se beneficiam vestindo as roupas que as mulheres tecem, e assim por diante. Embora eu não seja nenhum cientista, podemos ver masculino e feminino em tudo na natureza. A pilha da bateria só funciona porque tem um lado positivo (masculino) e negativo (feminino). A energia eletromagnética só funciona porque existe uma força elétrica (masculina) e outra magnética (feminino).  Não sou eu quem estou dizendo, estes são Princípios de Gênero da Filosofia Hermética, que permeou todo pensamento Renascentista e é um dos responsáveis pelo Método Científico que nós temos hoje.  Pelo visto algumas índias estão prestes a passar fome:


Sim, e com essa atitude, de preferência
 bem longe da tekohaw!!!

Será que simplesmente "copiar" os homens em tudo, trará um mundo mais igualitário em relação ao gêneros masculinos e femininos? Será que é possível viver sem o lado tradicionalmente feminino, que está sendo deixado de lado?  O lado materno, sensível das mulheres tem sido esquecido, e tratado como características inferiores. Cozinhar é depreciativo, ser dona de casa é depreciativo, a mulher hoje em dia parece que só tem valor se for igual a um homem, inclusive em vestimentas. E o pior de tudo, será que essa transformação é algo natural da sociedade, uma mudança de pensamento que vem de baixo pra cima? Ou será que é uma imposição unilateral de instituições com muito muito dinheiro? Será que não podemos chamar essa Terceira Onda Feminista, de propaganda política? O que aconteceu com a tradição que Darcy Ribeiro descreveu, de deixar uma "arco e flecha do lado do kunumi (menino) para ele se tornar um grande caçador, e uma tanga ao lado da ku'zàte'i (menina) para ela se tornar uma boa tecelã"?

Foi nesse contexto ideológico que comecei a perceber que havia uma atenção exacerbada dada à Festa do Moqueado (Wira'ohaw), também conhecida como festa da Menina Moça, e quase que nenhuma informação sobre o rito de passagem dos meninos Guajajaras, a Festa do Mel (Zemuishi O'haw).  Ao me aprofundar nesta questão descobri algo ainda mais grave. Que as duas festas estavam gradualmente sendo celebradas juntas, descaracterizando muito ambas as festas culturalmente. Os tamuy (anciãos) pareciam estar muito descontentes com isso, enquanto as lideranças de meia-idade estavam empurrando essas mudanças em nome dos "novos ideiais". Atualmente a festa recebeu uma revitalização, após ficar sem celebrada durante mais de 60 anos. Não é uma festa que precisa ser celebrada todos os anos, mas após a primeira ser decidida, deve ser celebrada nos próximos dois anos, fechando assim um ciclo de 3 festas consecutivas. A décadas atrás era a festa mais importante dos Tenetehara, mas foi perdendo espaço para a festa das meninas que atualmente é considerada a festa mais importante. Praticamente todas as aldeias juntaram as duas festas hoje em dia, exceto uma: a festa da Aldeia Juçaral, na Terra Indígena Araribóia. E é pra lá que eu fui, resgatar minhas raízes, passar pelo meu próprio rito de passagem, eu fui no intuito de "virar índio" através daquela festa.

Não foi dessa vez. Mas um dia eu volto!

Foram quase dois anos de planejamento. Eu pretendia usar as informações da Festa do Mel para dar entrada em um mestrado na Universidade de Portsmouth, onde me formei em Estudos Latino Americanos, ou em qualquer outra faculdade. Esta festa não acontece em datas fixas ou aldeia fixa, e depende da escolha do pajé, por isso só fiquei sabendo da data e local em cima da hora. Como não consegui o meu objetivo final, que era estudar a festa, só em transporte e acomodação joguei no lixo cerca de R$ 3.000,00. Isto fora toda a dificuldade que é a locomoção para um lugar tão isolado no interior do Maranhão. Ser negado de pesquisar a Festa do Mel me pegou de surpresa, porque tantos karaiws (caraíbas) já haviam passado por aqui, e assim não fazia sentido aquela resistência. Grande parte da minha motivação em apoiar a Aldeia Maracanã era dar continuidade aos meus estudos, como uma espécie de orientação de mestrado. Na época em que estudei na Inglaterra as monografias do meu curso com foco indigenista eram vistas como as mais "legais", portanto essa pesquisa era uma busca pessoal.

Na primeira tarde na aldeia indígena conheci o genro do cacique.  Fred estava tão feliz com a minha proposta que à noite me chamou para conversar, e inclusive me liberou para tirar fotos naquele momento.  Depois em sua casa me mostrou um documentário que ele não soube precisar se era de 2006 ou 2008, pois ele acabava de receber o DVD final de um cineasta ludovicense (que foi quem fez parte da câmera) e havia o enrolado com a edição todo este tempo.  Eu expliquei para ele o porque de eu estar indo pesquisar a Festa do Mel, e expliquei que teria um tema de auto afirmação masculina, e perguntei se depois de participar da festa os meninos se sentiam mais maduros, como guerreiros. Ele não soube responder o significado da festa, e disse que no dia seguinte eu teria que pedir autorização do cacique Zezé.

Duas faces de Fred: de camarada à vilão.

Já na segunda manhã em Juçaral, assim que despertei, passei as primeiras três horas tentando livrar minha bagagem de um enxame de formigas pretas, que haviam empestado as minhas coisas. Eu fui muito bem recebido por José Cleomar, o Kabukuhu, que foi um excelente anfitrião.  Ele jogou minhas bolsas no chão do quintal e mandou eu estender minhas roupas no varal.  Parecia um pouco surreal aquela cena de milhares e milhares de formigas saindo de dentro das minhas malas no meio do quintal, e várias galinhas e galos comendo aquelas formigas assim que elas saíam. Parecia que eram os pensamentos-urubus fugindo da minha cabeça, como o exército inimigo sendo engolido depois de ser desmascarado.  Kabukuhu supostamente era a pessoa que "deveria" ser o atual cacique de Juçaral, pois é o filho mais velho do antigo cacique, que ocupava o posto antes de Zezé, mas perdeu a oportunidade na época da mudança, em que morava em Barra do Corda, e era casado com dois filhos.

Neste mesmo dia  fomos ao armazém abastecer a casa de Kabukuhu, que significa "forte".  O problema foi que no caminho paramos no bar da sinuca, onde o parente pediu para que eu o pagasse uma cachaça curtida na casca de jatobá, para ele e seu tio que tinha vindo junto dar uma caminhada. Ele explicou um pouco sobre a T.I. (Terra Indígena), as invasões, os mestiços que moravam lá e outras dificuldades. Na venda fomos praticamente assaltados, paguei R$ 60 e saímos com o básico do básico (ovo, arroz, café e biscoito) e na volta passamos pelo bar da sinuca novamente, e paramos pois lá estava o Fred novamente, que também me pediu para lhe pagar uma bebida. Ele estava todo pintado de jenipapo do pescoço pra baixo, e estava muito contente com minha visita. Nosso papo foi tão bom que ele estendeu seu convite para me levar a uma Festa dos Rapazes, que é um ritual preparatório para formação de cantores, que irão aprender os cantos sagrados e manter viva a tradição de geração em geração de Guajajaras. Tudo parecia estar indo suave como uma brisa.

Por isso não entendi nada quando vi o clima ficar tenso na reunião com o cacique Zezé à noite. A rua não estava bem iluminada, haviam outros jovens ao redor da casa do Zezé, umas três motos, o seu genro Fred, uma anciã com um bebê envolto numa menepaw (pano para carregar bebê), o José Cleomar e seu vizinho Zezinho. Eu estava com uma dor de cabeça infernal, provavelmente efeito da caninha mais cedo, juntando com a pouca luz e as sombras rascantes nos rostos dos tenetehar, criou um clima cinematográfico para aquela discussão, em forma de debate em ze'egeté (o dialeto tupi dos guajajaras). Ouvi palavras soltas como "mongwer" (outras pessoas), "karaiw" (branco) e "kury" (agora). Em português apareciam alguns termos como "projeto" e "interesse", e de repente nomes que eu reconhecia como lideranças da Aldeia Maracanã. Neste momento eu interrompi, e queria me explicar, mas o Fred não permitiu. Ele estava bêbado, e visivelmente alterado. Eu tentei sugerir fazer uma pesquisa somente escrita, e não tirar nenhuma foto. Falei que caso meu projeto fosse aprovado para mestrado, eu teria que voltar para a aldeia e poderia oferecer algum retorno financeiro para eles. Mas finalmente apareceu o verdadeiro motivo pela discórdia, e alguns demonstraram irritação com as lideranças da Aldeia Maracanã, dizendo que um certo indígena "só anda de terno", disse o Fred citando o momento que os alguns se encontraram na Rio +20. Também citaram o fato de Urutau Guajajara ter nascido em terras indígenas, mas depois ter se mudado ainda jovem para a tawhu (cidade), e que isto afetaria seu status de "índio", sendo que inúmeros indígenas se mudam livremente entre cidade e aldeia e continuam a participar das festividades normalmente (inclusive a história de Sônia Guajajara é quase idêntica, pois ela também é cabocla). Eu expliquei que o meu mestrado não estava vinculado à Aldeia Maracanã, e que eu era apenas aluno de Língua e Cultura Tupi-Guarani. Nisso citaram exemplos de outros brancos que tinham ido na aldeia Juçaral, filmado a Festa de Moqueado, ganharam dinheiro em cima e não repassaram nada para os indígenas, e por causa disso só liberariam minha entrada na aldeia mediante uma autorização da FUNAI.  Eu respondi que não tinha boas esperanças com a FUNAI, e achava difícil eles me darem uma documentação em tão pouco tempo.

Abrindo um parêntese para explicar a causa (fajuta) da minha expulsão. As lideranças usaram como desculpa o fato de eu ter mencionado filmar e fotografar a festa, falando diversas vezes que o problema é que eu estaria com equipamento audiovisual e eu iria estar "roubando" essas imagens. Insistiram muito neste tema de fotos e vídeos serem proibidos, mas quando voltei pela segunda vez para Juçaral, além de uma equipe de quatro karaiws de São Paulo estarem filmando, o irmão de Sônia Bone também fez um documentário sobre a Festa do Mel naquela mesma ocasião:

O cacique Vicente seguindo sua missão de criar
jovens Tenetehar Ypy'a kwer I'm.

Em desespero eu falei que eles estariam perdendo a oportunidade de divulgar a etnia nos meios acadêmicos, e que diante daquela situação eu achava melhor mudar o tema da pesquisa para os M'Byas, pois estão localizados no mesmo estado que eu. Daí o cacique veio me perguntar sobre o que era Ku'zà Gwer (mulherada), que era praticado pelas cunhãs da Aldeia Maracanã. Eu expliquei que funcionava como um grupo de empoderamento feminino e espiritualidade baseada no Divino Feminino, que é chamado de "Circulo das Mulheres". Eles debocharam dizendo: "O que é isso? Círculo das Índias?" e riram muito, e disseram que na cultura deles é proibido até para as mulheres baterem maraká. Ficaram bravos neste momento pela Aldeia Maracanã estar usando o nome dos Guajajaras sem consultá-los.  Eles continuaram com a zombaria durante mais um tempo, e Kabukuhu e Zezinho viram que eu estava um pouco abalado e me levaram para casa.

Como o pau-de-arara diário não funciona nos finais de semana fiquei ali mais dois dias. Comemos pirá-myhyr e assistimos alguns vídeos no laptop. Inclusive teve uma hora que veio uma criançada que gostou muito de assistir os vídeos da banda Arandu Arakuaa. Mas quando coloquei os vídeos da expulsão violenta da Aldeia Maracanã em 2013, foi o momento que eles mais se impressionaram, eu acho que eles nunca tinham visto pessoas em centros urbanos com cocar e urucum, apanhando de policiais. Acho que eles entenderam que existem brancos que apoiam o movimento indígena sinceramente. Um dos que mais conversou comigo foi o Cícero, um indígena de 20 anos casado e com filhos, que me ensinou um pouco de ze'egeté (ao pé da letra: "fala verdadeira"), e perguntou como ele poderia continuar os estudos dele no Rio de Janeiro, e eu prometi ajudá-lo em qualquer coisa que precisasse. Quando dois jumentos se desprenderam e começaram a causar alvoroço na aldeia, eu fui tirar fotos, e ele viu que eu estava ali apenas pra fazer "turismo". Um grupo ficou muito chateado por eu estar sendo tratado daquela forma e ameaçaram até de fazer uma manifestação formal perante o cacique, mas eu dissuadi eles e falei que poderia piorar a situação.

Para os que acham que a cultura Guajajara não tem espaço para as mulheres, eis um exemplo: tia Maria Santana, uma famosa parteira. Ela me deixou em estado de pânico quando entrou no quintal do Cleomar num dia antes da reunião. Ela me interrogou até a alma, perguntou de onde eu vinha, se eu estava vendendo drogas e ainda me deu esporro: "Vira homem menino!". No final ela prometeu me ajudar mas nem com sua influência conseguiu amolecer os corações de ninguém.  O papel da parteira é tido como muito importante, porque o parto é visto como um ritual.  Vários esforços tem que ser feitos para que o marido recompense pela "violência" que ela vai passar por ter engravidado (que é culpa do marido, claro!). Vai ter dor, perder sangue e "rasgar" as genitais. Ambos vão ter que ficar em resguardo e só vão poder comer certas comidas. Na verdade o trabalho sobra para os sogros, que se mudam para a casa da nora, e junto com a parteira e o pajé são os únicos que podem entrar na casa, cujo interior só poder ter iluminação de fogueira. As posições de cada um são específicos para dar a luz, o pajé fica ao lado fumando cigarro de tawari e apalpando a barriga da grávida, para reposicionar a criança, espantar maus espíritos e para a barriga diminuir após o parto. Depois do nascimento o sogro arma uma rede da qual a mulher não pode levantar durante dez dias, e toda água que ela beber tem que ser fervida pela sogra e deixada esfriar, para não provocar cólica ou dores. Abaixo da rede é queimado algodão para afastar os maus espíritos. Além dessas tradições existem muitos outros resguardos e pequenos cuidados ritualistiscos, que seguem durante toda a vida dos indígenas.

A única misoginia que pude perceber foi quando Zanonni cita o pajé Santana dando entender que o nascimento de um menino é mais valorizado que o de uma menina (p.59), mas ao meu ver isso vai contra ao que Heber Negrão descreveu em Música na Mitologia Guajajara, que diz que "é importante para um chefe de família ter várias filhas, pois com isso ele aumenta sua família extensa e melhora sua situação econômica na sociedade, pois terá mais braços para trabalhar na roça"(p.34), já que o casal recém casado vai morar na casa dos pais da noiva e o noivo tem que prestar serviços para o pai da noiva por mais ou menos dois anos, como uma espécie de pagamento de dote. Talvez o que Zannoni descreveu foi mais uma opinião pessoal do pajé, do que um pensamento coletivo dos Guajajaras:
É por isso que que as filhas são mais desejadas, porque através delas o chefe de família garante o crescimento de seu grupo ao casá-las com outros rapazes que passam a morar e trabalhar para o sogro. (Música na Mitologia Tenetehara - Negrão, Héber Fernandes - UFMG, 2008)
A parteira Maria Santana é tia de Silvio Santana, diretor da CTL de Amarante (Coordenação Técnica Local - FUNAI). Eu ia dizer que o CTL de Amarante é um dos lugares mais inúteis do mundo, mas eles conseguiram se redimir nos minutos finais desta aventura. Mas pelos 99% da minha viagem ao Maranhão a única coisa que a Odileide conseguiu me adiantar foi o telefone do Silvio, que tem quase 2 metros de altura e está mais para caboclo que índio, e além de ser gago, é uma liderança importante da T.I. Araribóia.

Pelos próximos três dias passei pela experiência de ser "manejado" pela FUNAI de Imperatriz, o que confesso massageou um pouco meu ego, já que sou um músico/blogueiro totalmente desconhecido. Não tenho fãs, nem seguidores, nem poder político algum. Finalmente entreguei uma carta formal junto com a papelada que eu tinha no momento para a coordenadora da FUNAI e o Silvio, e ali combinamos que o Silvio me levaria na próxima segunda feira de volta para a aldeia sem problemas e se responsabilizaria por mim. Entre quinta e  segunda eu iria para Aldeia Morro Branco, mais ou menos 5h de viagem dali, banhar no Mearim e conhecer outros indígenas. Antes de sair de Morro Branco encontrei com Diacy Bone, que escreveu uma carta de recomendação para que eu levasse para Silvio, que por acaso é seu sobrinho.

Quando voltei para Amarante cheguei na CTL um pouco atrasado, e a Odileide disse que o Sílvio já havia passado. No dia seguinte lá estava eu no CTL bem cedinho e nada de Silvio, e a Odileide recomendou que eu pegasse minhas coisas e fosse.  Antes de ir embora me encontrei com uma liderança Guajajara que é também abelha-rainha da Festa do Mel. Ela me confidenciou que um dos problemas entre a Aldeia Maracanã e a Sônia Guajajara, é o não reconhecimento da 'Sônia como líder nacional e representante de todos os Guajajaras', o que me parece óbvio por não existirem caciques mulheres entre os Tenetehar. Eu estava bem na hora do pau-de-arara que só sai uma vez por dia as 13h para Campo Formoso (uma vila dentro da T.I.), portanto me despedi e segui meu rumo. Só deu tempo de comprar duas pingas para meu anfitrião e partir. Chegando lá, num brejo que fica logo antes da aldeia, avistei Cleomar com uma camisa amarrada na cabeça, parecendo um hippie, bêbado como um gambá. Banhando no brejo tinham oito pessoas que estavam ficando na casa dele. Kabukuhu me pediu para subir com sua irmã Deusirene e não andar sozinho pela aldeia, e que na ausência dele chamasse ela, o que não me incomodou nem um pouco ;-).

Dez minutos depois de chegar na casa de Cleomar apareceram 3 guardiões da floresta mais o Cícero. Os guardiões estava encapuzados e armados com rifle de caça, e começaram a perguntar o que eu estava fazendo ali e se eu tinha permissão/autorização. Fui dentro da casa ligeiro e peguei a carta de Diacy, que um deles pegou e começou a ler em voz alta enquanto um outro guardião mulato filmava com o celular, e se apresentou como José Otaviano. Aquilo não era obviamente um documento oficial da FUNAI, não sei se eles pensaram que fosse, mas naquela altura do campeonato que escolha eu tinha?

Ao anoitecer estranhei o fato de seis das oito pessoas que estavam na casa de Cleomar, que estava lotada, serem travestis de fora da aldeia. As visitas na casa de Zezinho, o vizinho, disseram que aquelas pessoas não eram parentes de ninguém e que não sabiam a procedência. Neste caso decidi ficar na casa de Zezinho que também me recebeu muito bem junto com sua família. Eu coloquei o filme Terra Vermelha para o povo da casa assistir, junto com alguns shows do RPM, e eles pareceram gostar muito dos dois.  Já na manhã seguinte o Fred apareceu na porta de casa dizendo que eu estava ali como invasor. Por Zezinho ser quem cria a filha de Fred de outro casamento, o genro do cacique não pressionou muito Zezinho por eu estar ficando ali. A irmã de Zezinho também estava lá com outros parentes, e pareceram muito desconfiados de mim. Aquela noite seria a introdução à Festa do Mel, tipo um preparatório para o evento. Eu estava muito nervoso de ter ido tão longe e talvez ter que assumir o fracasso de voltar sem nada do que me propus à fazer.  Naquela noite apareceu na televisão, em pleno horário nobre, uma propaganda política muito parecida com o vídeo que esta aqui abaixo, mas com cenas que focavam mais naquela região e especificamente na imagem de Sônia Guajajara.

Assista a partir do minuto 6:50.

De noite Kabukuhu me levou para a casa de reza, que não estava muito cheia. A equipe de filmagem de São Paulo estava lá, testando algumas luzes, mas não parece que filmaram nada. Aos poucos alguns cantos foram entoados, e chegaram lideranças junto com o cacique e alguns tamuy. A rua estava movimentada, foi muito lindo ver cerca de 200 pessoas, e escutar o borburinho em ze'egete. As motos e os adolescentes "descolados", davam um clima de "nos tempos da brilhantina", algo como Grease misturado com American Grafitti, versão Tupi. Num dado momento alguns travestis entraram no meio da dança na frente da casa de reza, enquanto o cacique Vicente batia maraká, e me pareceu visivelmente constrangido. De repente apareceu Sônia Guajajara, e nisso me livrei da guimba de petymeté, joguei no chão e apaguei rapidamente com o pé. Perguntei nervoso para o Cleomar se era realmente ela. Fiquei pensando como o Urutau não me avisou que aquela era plataforma política da prima dele? O que Cayuré pode ter falado ao meu purumu'e (professor) para ele ter sido tão econômico em sua orientação? 

As próximas 24h foram um tédio, quase não saí de casa praticamente. De manhã fui ao armazém com Zezinho, e na volta tomei outo esporro de Fred. De tarde fui almoçar na casa do pai de Kabukuhu e aproveitei e conheci o cantor e cacique Vicente Ramua'i Guajajara, o revitalizador oficial da Festa do Mel, e supostamente o cantor que sabe mais cantos da cultura Guajajara. Ele estava meio calado, e não respondeu à muitas perguntas, tão pouco o pai de Cleomar. Senti que a desconfiança dos parentes aumentava à cada dia, e eles já não me passavam nenhuma informação. Naquela oportunidade, e revoltados com o meu tratamento, Cleomar e Deusirene me ofereceram para filmar e tirar fotos dos festejos para mim, já que eu não podia ir a nenhum deles (pequenas partes da festa acontecem ao longo do dia). Então emprestei meu iPad para Deusirene e ela tirou belas fotos. Eu as vezes ficava em casa batendo maraká no quintal de Zezinho, acho que Cleomar ficou com medo de alguém ver e não gostar, então pediu emprestado para sua irmã ir à festa. Era um maraká diferente para eles, porque era de côco e não de cabaça. Modéstia à parte tinha uma "zuada" muito boa, eles próprios elogiaram. Eu tinha pedido para a esposa de Urutau, de quem eu comprei, para botar mais sementes especialmente para fazer gravações em estúdio. O maraká ganhou dimensões sobrenaturais quando a esposa de Zezinho colocou um acabamento especial de palha trançada, e penas regionais que deixou o maraká muito muito bonito.

Tentei ligar diversas vezes para o Rio, para tentar transferir algum dinheiro pra cobrir aquelas despesas inesperadas que eu iria ter. Por isso fui várias vezes ao namihu (orelhão) que era do lado da casa do cacique, com certeza levantando mais suspeitas ainda à meu respeito, já que os índios tem o hábito de ficar do lado de fora de casa conversando. De tarde fumando um petymeté (gigante para os padrões cariocas) com Kabukuhu eu falei que estava preocupado, já tinha começado a ligar para casa para pedir ajuda, porque não tinha dinheiro para pagar hospedagem até o dia de ir embora. Ele foi muito incisivo dizendo que eu não deveria ir embora, para o índio tomar uma atitude covarde é algo muito sério, então lembrei de Urutau em cima da árvore sem comida, em Dezembro de 2013, e eu pensei se ele aguentou, porque eu também não posso?

No que viria a ser minha última noite em Juçaral fomos para a casa de reza novamente, mas a rua estava bem mais cheia, tinha até espetinho de churrasco para vender.  Naquela noite Cícero estava visivelmente alterado, acho que ele tinha visto o anúncio do PSOL na TV também. Ele estava meio "alto" e no meio da rua gritando: "Isso é um absurdo, é politicagem, essa Sônia não tinha que estar aqui!".  Falou mais algumas coisas dando entender que a Festa do Mel não é lugar de partido político. Ele estava falando essas coisas porque neste exato momento todas as lideranças, pajés e cantores estavam na frente da casa de reza em semi-círculo, com luz e câmeras padrão "Globo", e a Sônia ao centro fazendo uma filmagem que parecia muito no estilo de uma propaganda política. Nisso Cícero foi bem enfático dizendo que se a Sônia poderia "lucrar" com a cultura Tenetehara, ele também podia. Então me puxou pelo braço e mandou eu pegar meu celular porque ele queria me "vender" alguns cantos sagrados na língua.  Eu falei que adoraria aprender os cantos, mas que essa coisas de "comprar" eu achava ruim. Daí o Cleomar viu o que estava acontecendo e mandou ele pra casa. Antes de dormir falei a Deusirene que os orelhões da aldeia não tavam funcionando, e se ela podia me levar à Campo Formoso pela manhã para eu tentar dar um jeito de ir embora.

Ironicamente foi ao tentar partir que toda a confusão começou. Na saída da aldeia, passando pelo quebra molas bem em frente à guarita dos guardiões da floresta, encapuzados com barraclavas, já mandaram a gente parar, eu fiquei por ali mesmo e Deusirene foi embora. Silvio já estava ali (por coincidência?), e eu pedi ajuda para ele, mas ele nada pode fazer. Uns estavam com o capuz só na metade do rosto, outros totalmente cobertos, e carregavam rifles de caça. Eles perguntaram se eu achava que eles eram idiotas, de que eles sabiam que eu estava ali para espionar alguma coisa. Eles me questionaram se eu tinha contratado a Deusirene para fazer imagens da Festa contra a vontade deles, e queriam que eu entregasse o tablet que eles viram a índia usar. Depois mandaram eu montar no capô do quadricículo, não na garupa mas no capô da frente segurando nos ferrinhos. Em seguida me desfilaram pela aldeia de forma constrangedora, com todos saindo de suas casas para ver o que estava acontecendo. Mais tarde em Amarante alguém me contou que foi dessa forma que mataram um invasor à uns tempos atrás, acelerando e depois freiando bruscamente o quadricículo para a pessoa ser lançada para frente.

Chegando na casa de Zezinho mandaram eu arrumar minhas coisas e saíram entrando e revistando meus materiais. Zezinho e Cleomar tinha saído cedo para pegar tawari para o fumo do pajé, por isso a mulher de Zezinho ficou extremamente nervosa. Sônia Guajajara e o cacique Zezé já tinham me olhado estranho quando passei pela casa de reza a primeira vez de moto com a Deusirene, e nisso a coordenadora executiva da APIB chegou por ali para observar. Um guardião muito branco com um nariz que lembrava mais um italiano que um índio, começou a gritar comigo:

'Tá vendo como vc tá mentido, olha o tablet aqui!'
'Isso não é um tablet, é um Kindle.'
'Você acha que é malandro, carioca?'
'Não, pode ligar pra ver, ele é preto e branco, só serve para ler livros.'
'Vai pegar suas coisas e bota na pick-up.'

Silvio já estava la fora esperando para me levar embora. Enfiei tudo o que podia na mochila. Sai e fui ao lado na casa do Kabukuhu para pegar um tênis e meu maraká que eu tinha emprestado para ele, e ao sair no quintal Sônia estava de mãos dadas com um travesti conversando de cabeça baixa, como que "em reservado". Entrei de novo na casa de Zezinho para pegar minha kihaw (rede), e a mulher dele perguntou o que deveria fazer com meu iPad que ficou com a Deusirene, e eu fiz com a mão como quem diz "deixa pra lá". Eu explodi para fora de casa com raiva batendo o maraká (algo que é proibido) cantando "Maynumy Wirà" e todos os curiosos que se amontoaram em volta me olharam em estado de choque. Joguei minhas coisas na caçamba da pick-up e entrei e sentei no meio do banco de traz, e a Campo formosense veio atrás e sentou do meu lado na janela. Logo com o carro em movimento eu pleitei: 'Sônia, me ajuda, eu não tenho nada a ver com política, movimento social, eu nunca sequer fui numa passeata, não estou entendendo o que está acontecendo'. Ela ficou em silêncio. Chegando novamente no mesmo lugar onde fica a guarita dos guardiões a pick-up parou e eles revistaram minhas coisas dessa vez de forma mais minuciosa. Abriram minha carteira e tiraram tudo que tinha dentro dela, inclusive um santinho da Aldeia Maracanã do Dia do Índio, que não deve ter pego muito bem. Me fizeram várias perguntas, eu falei que era apenas estudante de ze'egeté na UERJ às quintas-feiras. Daí eles disseram que eu estava envolvido com pessoas que eles não gostavam, eu falei que conhecia alguns ativistas da Aldeia Maracanã, mas não os ex-ativistas dissidentes, principalmente os que foram para a Colônia Kurupaiti. Nisto eles com a desculpa de analisar o conteúdo de todo meu material (laptop, HD externo, Kindle e celular, apostilas de tupi-guarani, e a agenda na qual escrevi a história que vos conto agora), confiscaram cerca de R$ 5.000,00 reais em equipamento, e prometeram devolver na FUNAI de Imperatriz. Logo antes de partir, um guardião com gostinho de vingança, arrancou meu marakà de dentro da caçamba, e nunca mais consegui recuperá-lo.

Santinho da Tekohaw Cayuré Imana, uma arma
de propaganda extremamente perigosa.

No caminho de volta o Silvio Santana me confirmou que o motivo que eu não estava sendo aceito na Festa do Mel não tinha nada a ver com o cacique, nem o fato de eu não ter permissão da FUNAI, muito menos qualquer tipo de filmagem que eu pudesse fazer, mas deixou bem claro mais uma vez que não gostaram de eu estar indo através de lideranças da Aldeia Maracanã, onde eu cansei de falar repetidamente, sou apenas aluno e professor voluntário de inglês.

Chegando no Amarante me hospedei no N & G Dormitório, e tentei organizar uma forma de recuperar minhas coisas. Ao desligar o telefone caiu a ficha que eu havia sido na verdade roubado, por isso resolvi voltar para o CTL e no caminho entrei num restaurante aleatoriamente para comprar um guaraná, e encontrei o Silvio almoçando tranquilamente com sua família. Contei uma história triste para ele, expliquei que na próxima segunda feira seria feriado de 7 de setembro, e portanto não adiantaria ir para Imperatriz, e ele prometeu me devolver as minhas coisas aquela noite mesmo. Eu esperei até a manhã seguinte e a funcionária da pousada me confidenciou que os indígenas da região não são muito de devolver as coisas, e que os guardiões vivem roubando motos das pessoas, e que eu deveria tomar cuidado porque um outro filho do Fred mora naquela mesma pousada.

Sônia é uma mulher destemida, por isso não tem medo de bater maraká 
mesmo sendo proibido por sua etnia.

Eu passei essa informação para o José Urutau no Rio de Janeiro que se colocou à minha disposição para me ajudar no que eu precisasse, e ele acionou três lideranças da Aldeia Morro Branco para vir à Amarante me ajudar nesta situação. Os três parentes que vieram me ajudar foram sozinhos para Juçaral tentar recuperar minhas coisas.  Eles voltaram ainda cedo no Domingo sem o material, mas com uma filmagem de celular com Silvio garantindo que devolveria meu equipamento na FUNAI de Imperatriz.  Eles disseram que de certa forma "estragaram a festa" da Sônia, e que todos pareciam ter ficado muito nervosos com a presença destes parentes lá. Eles devem ter pensado que eu não tinha ninguém para me acudir. Disseram que o pessoal de Juçaral costuma frequentar as festas de Morro Branco sempre, mas não recebem muito bem os convidados quando a situação se inverte. Segundo eles as instituições como COIAB e APIB dão bastante apoio financeiro para os eventos de Juçaral, mas a festa parecia fraca. E já as festas de Morro Branco são financiadas do próprio bolso, mas são bem melhores. Um tamuy de Morro Branco reclamou que não ofereceram nada para ele comer, e que o cacique em nenhum momento apareceu para dar qualquer satisfação.

Minhas amigas de Morro Branco me recomendaram eu não ficar ali, porque podia ser perigoso, então passei o feriado de 7 de Setembro em Grajaú, e na terça-feira fui com força total para praticamente ocupar a FUNAI de Imperatriz, voltando para casa só para dormir. Lá consegui o telefone do coordenador regional Daniel Cunha de Carvalho, e depois de eu esbravejar exigindo minhas coisas, ele mandou eu ir na polícia e desligou na minha cara. Neste mesmo dia iniciou-se um bloqueio na estrada para Juçaral, por exigência de melhorias nas mesmas (que são de barro, esburacadas, e demoram muito para trafegar). Em protesto os índios detiveram o próprio Daniel em Juçaral. Isso complicou mais ainda a minha vida. Conversei com indígenas lá, e um me confidenciou uma história bem incrível. Ele me falou que no ano passado,  ele havia sido convidado para um evento que seria futebol e churrasco de dia, de noite o show de forró da banda Revelação da Tribo, do vocalista Régis Guajajara, mas em que no dia seguinte haveria uma "Parada de Orgulho Gay" no meio da Aldeia Zutiwa. Ele disse que as instituições organizadoras ficaram 24h de conseguir levar adiante esse evento, mas na hora H, depois de muita pressão dos tamuy, eles conseguiram cancelar. Mesmo assim durante o show de forró foram levados os mesmo travestis que estavam na Festa do Mel, e lá inclusive se prostituíram com jovens indígenas que foram assistir o show.

Não é só nas igrejas e templos que precisamos conservar valores
 tradicionais, mas na tekohaw de nossos ancestrais também!

No penúltimo dia, depois de trocar minha passagem de volta, a própria coordenadora da FUNAI cansada de não ter o que dizer para mim, também me mandou ir na polícia, e foi o que eu fiz. O policial falou que estava a muito tempo "querendo pegar" esses guardiões, e que alguns estão até jurados de morte.  Ouvi umas história sobre um cabra que foi amarrado numa árvore por eles, em seguida foi roubado os cordões, relógio e até dente de ouro. Este cabra então que foi roubado vai todos os dias para a praça central do moto-taxi de Amarante com uma pistola, e fica esperando algum guardião aparecer. Quando o delegado entrou na CTL para perguntar onde estavam minhas coisas um funcionário confidenciou que os guardiões são financiados pela polícia federal. Acho que a valentia deles só vale dentro da reserva, porque em 24h minhas coisas apareceram na CTL de Amarante. Os inspetores de polícia pediram para que minhas coisas fossem entregues na delegacia e que só fossem repassadas para mim apos 48h. Dito isso sou eternamente grato à Odileide e o parente da etnia Gavião que "sequestraram" minhas coisas e me permitiram diminuir o prejuízo! Katu ipo myrypar!!!

Ao invés de beber mel fermentado e buscar minha ancestralidade
precisei ir parar numa delegacia de polícia!

Na tradição tenetehar é expressamente proibido expulsar um convidado depois do início da Festa do Mel, com perigo de atrair mazelas como castigo do próprio Tupàn.  Posso dizer com toda segurança que a maioria dos índios que me acolheram são grandes guerreiros desta nação indígena, embora as lideranças tenham agido desta forma, a grande parte deste povo defende um país verde que protege e cuida da natureza. Para o ignorante, a velhice é o inverno da vida; para o sábio, é a época da colheita, e foi com essa força que os Guajajaras fortaleceram a união para lutar para apagar o fogo que consumiu grande parte da mata da reserva Araribóia, e que demorou quase dois meses para ser controlado, o que só foi possível com chuvas.

Um dos grandes razões da disputa entre a Aldeia Maracanã e a APIB e a FUNAI, são motivadas por estas instituições nunce terem reconhecido a Aldeia Maracanã como terra indígena, principalmente pelo fato de não ser uma aldeia de uma só etnia, mas por abrigar índios de todas as partes do Brasil. A idéia era, e ainda é, de se fazer uma Universidade Intercultural de saberes tradicionais, com aulas não só com um conteúdo mais correto e verdadeiro ao que se diz respeito à história, cosmologia e medicina indígena, mas o desejo do movimento é trazer também a metodologia de ensino indígena, com diferentes conceitos de turmas, níveis de aprendizado e certificados. Para entender melhor este dilema é só clicar no link.

Quem tiver interesse em ler o mito de como Aruwê recebeu as instruções para a Festa do Mel da própria aldeia subterrânea das onças pode clicar no link para o pdf.

Um mês antes de publicar esta postagem, encontrei Sônia no festival Emergências, na Fundição Progresso. Por coincidência tinha ido lá tentar entrevistar o Ailton Krenak, para uma postagem sobre o desastre das explosões da barragem da companhia Vale do Rio Doce em Mariana-MG, mas não o encontrei e acabei vendo Sônia sentada dando uma entrevista para três jovens. Interrompi a entrevista, apertei a mão dela e perguntei à respeito do meu maraká e iPad, ela respondeu que não sabia de nada, eu falei, 'mais ué, você não estava ao meu lado na pick-up do Silvio quando os guardiões estavam me expulsando?'. Depois tive que desabafar: 'Você não pode infiltrar travestis no meio da Festa do Mel! Festa do Mel é coisa de homem!!!". E as pessoas olhavam em volta não entendendo nada, a repórter veio falar que queria continuar a entrevista. Ao sair de longe eu ainda esbocei: 'Sônia, cadê a sua autorização para estar na aldeia dos Cariocas??? Aqui é tekohaw dos cariocas, não é lugar de Guajajara não!!!'. Mas em nenhum momento ninguém do equipe dela, ou da APIB, ou COIAB, ou da FUNAI veio me procurar, nem pra se desculpar, ou para oferecer qualquer tipo de compensação pelo que passei nesta viajem temerosa. Nem sequer quando abriram vagas para mestrado no Museu Nacional-UFRJ, o qual três indígenas daquela região passaram, ninguém daquela região nem ao menos me avisou sequer da existência deste mestrado, sendo que alguns deles já estão inscritos e virão morar aqui no Rio de Janeiro em 2016.

Não que eu concorde com o conteúdo da letra, mas achei apropriado para este momento terminar o texto com a versão do clássico Sunny, de Bobby Hebb, adaptada para o português pelo genial Léo Jaime, porque depois disso tudo, quem sabe esta não será a música de fundo ao rolar os créditos, de um mirabolante filme como esse?

A viagem que foi 99% inútil, mas com
aquele 1% de sucesso de bilheteria.

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